FESA Entrevista Ana Addobbati, fundadora da Livre de Assédio
Para aproveitar a semana que comemoramos o Dia Internacional da Mulher, convidamos Ana Addobbati, fundadora da Livre de Assédio, para participar desta edição do FESA Entrevista e tocar em uma dor coletiva para as mulheres: o assédio.
Nossa convidada contou sobre sua trajetória profissional, seus propósitos, como criou uma empresa de combate ao assédio, sua parceria com a FESA Group e detalhes de sua participação nos livros “Uma Sobe e Puxa a Outra” (volumes 1 e 2).
Confira a entrevista e reflita sobre esse tema prioritário na nossa sociedade!
Sabemos que você é bastante engajada com causas sociais, principalmente ligadas às mulheres. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional e seus propósitos.
Sou fundadora da Livre de Assédio e estudei jornalismo e administração. Também tenho um mestrado executivo na Espanha em marketing digital e comunicação estratégica. Chego neste momento de carreira como fundadora da Livre de Assédio, passando por uma jornada em que eu fui repórter de direitos humanos quando, na verdade, queria ser repórter de economia.
O destino me fez ir para a rua, acolher mulheres que foram vítimas de violências domésticas, mães chorando em cima do corpo de suas filhas no Recife (PE), cidade onde nasci, e uma das mais perigosas para as mulheres viverem. Eu não sabia que ali teria o começo de uma nova jornada.
Em seguida, fui morar na Ásia por dois anos e meio. Durante dois anos morei na China, primeiro em Wuhan, cidade que ficou conhecida por ser onde começou o Covid, depois em Xangai, e volto para trabalhar no meio corporativo no Brasil. Minha vivência na Ásia e na comunidade muçulmana mais conservadora, e a volta para o Brasil, trazem outro ponto que mostra que eu estava cumprindo essa jornada sem saber: comecei a estranhar que entre meus pares e pessoas da minha cultura faziam piadas e comentários tóxicos, que hoje sabemos que são assediosos, e que na minha trajetória na Ásia eu não ouvia.
Por exemplo, “essa cadeira é para um homem”, “vai viajar a trabalho, então tome cuidado para não voltar abusada”. Isso após ter passado pela Natura, uma empresa que foi uma escola para mim, extremamente feminina e que tinha uma jornada de formação e construção de uma cultura pautada por valores e éramos cobrados a viver essa cultura. Quando não se falava de assédio, já existia uma ouvidoria atuante e um compliance que olhava para a qualidade das relações. Isso fez toda a diferença.
Em seguida, recebi o convite para trabalhar com Relações Internacionais no Comitê Rio 2026, nas Olimpíadas. Eu tinha que saber de cor todos os protocolos do Comitê Olímpico Internacional e me chamou a atenção como tinham um protocolo para várias situações e de uma forma muito humana. Por exemplo, em um caso de um luto, como aquela pessoa seria acolhida e a comunidade de quem se foi como seria acolhida, mas também um passo a passo que deixava não só a pessoa que passou pelo luto em segurança, mas a empresa e todos nós. Foi uma etapa importante na minha jornada.
Quando os jogos terminaram, voltei para Recife para descansar. Na época, estava fechando dez anos de carreira e me lembro que parei na praia e comecei a escrever em um caderno que eu gostaria de pegar todos meus conhecimentos adquiridos até ali e fizesse algo em prol de um propósito e uma causa que me conectasse e me deixasse feliz.
Foi preciso entender que as coisas não são tão lineares. Lembro que, nessa época, já tinha estourado o movimento Me Too, quando as mulheres começaram a falar dos assédios que viveram em sua vida. Vi que não estava sozinha, e que aquelas micro-violências e o medo que temos como mulher não incomodava só a mim.
Nesse processo, também me recordei de estar em uma padaria tomando café, assistindo ao Programa da Fátima Bernardes que falava sobre felicidade e propósito. Uma psicanalista explicou que precisamos entender a diferença entre meta e o que nos conecta com a felicidade. Meta é o que colocamos como objetivo, como um diploma ou comprar um carro. Depois que você alcançou, passou. Já a felicidade conseguimos fazer nas coisas mais simples, não necessariamente o que dá retorno material. Mas sim, o que nos conecta com a nossa essência. Então, eu entrei em um processo de autoconhecimento, fazendo terapia na época.
Como surgiu a ideia de criar uma empresa para combater o assédio? O que faz a Livre de Assédio?
Em certo momento, minha terapeuta me provocou e perguntou se eu já havia passado por uma situação de abuso. Respondi que não e ela disse: “Abuso não é apenas o estupro, mas também o assédio. E na sua jornada tem vários pontos que mostram que você estava lidando, principalmente em ambientes muito masculinizados, com situações de assédio que causaram sofrimento e você teve que se desdobrar. Isso é uma dor coletiva, pois muitas mulheres passam por isso”. Nesse momento, eu tive um período sabático, quando fui para o Uruguai.
Em um bar para encontrar uma amiga, sofri um assédio e eu ia embora, mas o garçom disse para o rapaz que “eu tinha todo o direito de tomar meu vinho sem ser incomodada, quem sai aqui é você”. Pensei em como normalizamos esse lugar que nós mulheres não pertencemos, que temos que ter sempre uma estratégia de fuga para se defender e que não temos rede de apoio.
Voltei para casa e peguei os números da indústria do turismo. A brasileira é o segundo grupo que mais viaja sozinha no mundo, perdendo apenas para as japonesas, de acordo com uma pesquisa do Airbnb. Comecei a ver a potência tanto do mercado da mulher que precisa de uma rede de apoio quanto da importância da indústria criativa para gerar empregos na América Latina. Esse é o começo.
Lateralmente a isso, me tornei liderança no terceiro setor, dirigi algumas ONGs e a Livre de Assédio, a organização que hoje lidero, vem dessa trajetória. Comecei a descobrir o quanto o assédio está conectado com as desigualdades e o quanto precisamos endereçar esse tema. É uma ferida que temos no Brasil, pois a maior vítima do assédio hoje é a mulher negra, a mãe de família, que está no começo de carreira, em situação de trabalho em indústrias que muitas vezes não é tão formal.
Precisamos entender que, se passamos pelo menos 8h da nossa vida no ambiente de trabalho, se já vivemos em um país onde a cada 22 segundos em meio uma mulher é espancada, temos que garantir que essa mulher trabalhe em um lugar de igualdade e segurança para que ela não precise pedir demissão devido ao assédio. Podemos considerar que o ambiente de trabalho deve ser um vetor de transformação da sociedade para endereçar externalidades ao negócio.
A Livre de Assédio surge dessa minha trajetória. Hoje é uma organização que previne e combate o assédio integrando governança, regulamentação e tecnologias para escalar o acesso para empresas de diversos segmentos e tamanhos para que se tornem lugares seguros para mulheres consumirem e trabalharem.
Como você avalia a importância do Dia Internacional das Mulheres para o mercado de trabalho?
O Dia Internacional da Mulher é muito importante para o mercado de trabalho pelo fato de fazermos uma parada para olhar questões ligadas a gênero. É bem importante entendermos que cada empresa tem sua cultura e momentos diferentes. Mas o convite que faço aqui é que se você olhar para quantas mulheres trabalham na sua empresa, quais políticas existem — questões como a licença maternidade e políticas anti assédio — que isso não seja apenas no mês de março. Afinal de contas, construímos cultura com consistência e constância.
Então, que seja um convite para olhar para esse tema, uma vez que somos um país majoritariamente feminino e que não tem como escapar da pauta. Temos a Bolsa de Valores cobrando diversidade nos conselhos, novas regulamentações, mas que não seja só no mês de março. Para transformar a cultura precisamos ancorar valores e políticas, mas essa mudança acontece ao longo do tempo e avaliando a curva de maturidade da empresa.
Como a Livre de Assédio impacta a vida das mulheres no ambiente de trabalho?
A missão da Livre de Assédio sempre foi garantir acesso a mecanismos, ferramentas que transformam a cultura para empresas de qualquer segmento e porte. A parceria com a FESA Group, que a Trillio faz parte, é extremamente importante para entender que não tem desculpa para as empresas dizerem que não têm acesso à informação e ferramentas educacionais para transformar a cultura.
No final das contas, podemos até falar “tenho um jurídico atuante” ou “tenho compliance”, mas cultura transformamos com educação. Entendendo a urgência que tem esse tema, que as companhias precisam entender que ocupam um lugar cidadão e que existem novas regulamentações, como o Programa Emprega Mais Mulher, que obriga anualmente as empresas a fornecerem cursos sobre assédio sexual, e recentemente o protocolo “Não é Não” sancionado. Não tem mais desculpa.
Para nós, é uma honra trabalhar com parceiros que lidam com esse tema ancorado com impacto e seriedade para garantir nossa missão e visão de ter um mundo seguro para todas as mulheres e todos os grupos minorizados.
Qual foi sua contribuição no programa de aprendizagem online sobre o combate ao assédio em empresas desenvolvido pela Trillio, HRtech do Ecossistema FESA?
Conheci os parceiros quando tinha acabado de me mudar para São Paulo (SP). Sinto muita honra e carinho, pois na época não existia uma lei que obrigava e foi o primeiro curso de prevenção ao assédio sexual nas empresas que fizemos em parceria. Fico muito grata por essa parceria que surgiu em 2018 e que continua se renovando, criando novos conteúdos, porque isso mostra o compromisso do grupo com nós, mulheres.
Não foi apenas devido à lei ou uma moda, e sim pela sensibilidade e importância de entender que combatemos a desigualdade quando garantimos a equidade de gênero em um ambiente de trabalho seguro para todas.
Quando pensamos em criar o curso e a Trillio topou, foi bem interessante por existir a preocupação de ter um curso muito humano. Tenho na minha trajetória vários depoimentos de vítimas e, obviamente, para preservar suas identidades contratamos artistas. Em certo momento da gravação, esses artistas começaram a compartilhar também histórias que haviam sofrido, choraram e se emocionaram. Assim, surgiu um capítulo adicional chamado de “Minha História”.
Já no curso de assédio moral, que também falamos de gênero, estávamos em um momento diferente da sociedade e teve gente que resolveu dar a cara, mostrar e contar o que aconteceu para apresentar que se trata de um problema que precisamos endereçar. É um convite para entender que por trás desse curso, tem muita história, jornada e energia de pessoas que querem fazer a diferença.
Como foi participar dos livros “Uma Sobe e Puxa a Outra” (volumes 1 e 2) como co-autora? E como aconteceu o convite?
O livro surgiu de um grupo de WhatsApp de mulheres se conectando, uma puxando a outra. Fui puxada pela minha mentora, a Natália, que cuidou de mim no Programa Voa, da Ambev, quando eu estava sendo acelerada e ela comentou que achava importante eu estar no grupo. A proposta era: uma sobe e puxa a outra. Começamos a ver que tínhamos muitas dores coletivas enquanto mulheres que eram empreendedoras, diretoras, mães e que estavam ali tentando voltar para o mercado.
Então, o convite foi: “que tal contarmos a história de como fomos puxadas e como puxamos outras?”. O exercício foi muito bacana, parar e sentar para ver quanta coisa fizemos na vida, quantos desafios qualquer uma dessas mulheres passou, colocar no papel e trazer isso para um livro. Foi de uma potência incrível, até brincamos que, no lançamento, paramos a Avenida Brasil de tanta gente que foi celebrar essa vitória conosco.
O que acho interessante é algo que precedeu o lançamento do livro, o capítulo 2 que faço parte, o prêmio que fui receber na Espanha. Mandei uma mensagem contando que estava concorrendo a um prêmio de votação popular e começaram a surgir dúvidas se poderiam votar em outras mulheres também e elas foram votar.
Quando cheguei no evento, a organização me disse que estava muito emocionada porque seria uma revanche: só subiu mulher no palco naquele ano. Tanto aquelas que estavam no palco quanto as organizadoras estavam emocionadas. Sei que isso causou muito incômodo nos homens, mas banco a Leila Pereira, presidente do Palmeiras e digo: “não sejam histéricos”.